Lei de Conservação
Christiano Torchi
Em 5 de agosto de 2010, o desabamento de uma jazida, ocorrido ao norte do Chile, isolou totalmente do mundo, durante quase três semanas, em condições extremas de insalubridade, desconforto e privação de alimentos e água, 33 trabalhadores, a cerca de 700 metros de profundidade. Resgatados com vida dois meses depois, pelas equipes de salvamento, eles contaram, em detalhes, a apreensão, a angústia e o medo que experimentaram. O episódio comoveu o mundo todo. As autoridades se mobilizaram e milhões de dólares foram gastos para salvar os mineiros.
Esse episódio, como tantos outros que acontecem diariamente mundo afora, reforça a ideia inata de que a vida é um bem inestimável e que tem primazia sobre outros valores. Toda vez que o ser humano se encontra em perigo iminente, as forças ocultas do instinto, independentes ou conjugadamente com o raciocínio, entram em ação para protegê-lo do possível extermínio. Nesse momento, o princípio inteligente que habita o corpo em perigo reavalia todos os seus valores, elegendo como prioridade a proteção ao bem supremo da natureza: a vida!
E por que a vida é cercada de tantos cuidados pelo Criador? Os Espíritos superiores ensinam que o instinto de conservação é uma das leis da natureza. Ele obriga a criatura a prover às necessidades do corpo, pois sem força e sem saúde não consegue realizar o trabalho que lhe compete no concerto evolutivo. Todavia, esta é uma faculdade inerente não apenas ao homem, mas a todos os seres vivos, seja qual for o grau de sua inteligência. Em uns é exclusivamente automático ou inconsciente, enquanto em outros é racional. Sem o instinto não haveria o aperfeiçoamento das espécies, que têm que concorrer para o cumprimento dos desígnios divinos.
O instinto é a mola propulsora que impele os seres orgânicos à prática de atos espontâneos e involuntários, com vistas à sua conservação. A par do instinto, há a inteligência, que se revela por atos voluntários, premeditados, combinados, de acordo com as circunstâncias. O instinto é um guia seguro, que jamais se engana, enquanto a inteligência, pelo fato de ser livre, está sujeita a erros. À medida que a criatura progride, lentamente o instinto vai dando lugar à inteligência, porém, mesmo na pessoa de intelecto mais avançado, o instinto ainda se manifesta em caráter suplementar.
O princípio inteligente, que dormita no vegetal, agita-se no animal e desperta no homem,1 desde sua origem e em suas primeiras manifestações no plano físico, automatiza, por meio de experiências incontáveis,
repetitivas e sucessivas, vivenciadas em organismos progressivamente mais complexos, reações aos impulsos do meio físico, que se vão gravando no perispírito, com o fim de proporcionar a adaptação desses seres ao meio ambiente:
[...] [os instintos] constituem [...] os fundamentos da vida intelectual; são os mais prístinos e mais duradouros movimentos perispirituais que as incontáveis encarnações fixaram, incoercivelmente, em nosso invólucro fluídico, e, se o verdadeiro progresso consiste no domínio desses instintos brutais, infere-se que a luta seja longa, quão terrível, antes de conquistar esse poderio.2
O instinto predomina no animal, que elabora apenas ideias-fragmentos. 3 Nele, a inteligência e a liberdade estão condicionadas pelas necessidades materiais. Por isso, não tem vida moral, ao contrário do que acontece com o homem que, além da razão e do livre-arbítrio, possui ampla vontade, motivos pelos quais é responsável por seus atos, tanto que se encontra sujeito à lei de causa e efeito.
Se, por um lado, é imposta à criatura humana a necessidade de viver, por outro, Deus concede-lhe os recursos indispensáveis para suprir essa necessidade e suavizar-lhe as lutas. Toda a matéria-prima necessária à alimentação e ao desenvolvimento da indústria e do comércio encontra-se disponível na Natureza. À medida que aprimora a Ciência, o homem vai descobrindo e ampliando meios de satisfazer seus anseios.
Não se contentando com o necessário, o indivíduo, se egoísta e orgulhoso, lança-se, avidamente, à busca do supérfluo, criando necessidades novas em busca de outras satisfações, que lhe trazem muitas
angústias e aflições. É aceitável e natural que procure o seu bem-estar, desde que não incorra em abusos. Atualmente, ainda que de forma tímida, algumas lideranças mundiais vêm propondo ideias, a fim de substituir o modelo de desenvolvimento atual, que é altamente predatório e nocivo ao planeta, por outro que seja economicamente viável, socialmente justo e ecologicamente responsável.
O limite entre o necessário e o supérfluo não é absoluto. O progresso criou necessidades que eram impensáveis no passado, como, por exemplo, as surgidas com o advento dos modernos sistemas de comunicação.Ninguém admitiria, em sã consciência, que a civilização tornasse a viver como nos tempos primitivos. Se ainda existe miséria no mundo, ela se deve aos vícios da organização social, ainda dominada pela ambição e pelo egoísmo. A Humanidade não alcançará as metas do sonhado desenvolvimento sustentável, se o progresso tecnológico não estiver atrelado ao progresso ético dos indivíduos.
Como ingredientes do instinto de conservação, há dois grandes aliados da evolução: o prazer e a dor. Se não fosse o prazer, a perpetuação das espécies por meio da alimentação e da reprodução sexual estaria em risco. Como visto, Deus concede às criaturas de todos os estágios evolutivos os meios indispensáveis de que necessitam para progredir e ser feliz, ainda que estejam sujeitas, em determinadas etapas de seu desenvolvimento, à dor-evolução ou à dor-expiação, esta última típica dos homens, que ainda estão aprendendo a utilizar o livre-arbítrio.
Em síntese, o uso dos bens da Terra é um direito de todas as criaturas. Deus colocou atrativos no gozo desses bens para estimular o Espírito encarnado ao cumprimento da sua missão e também para experimentá-lo por meio da tentação. O objetivo dessa tentação é desenvolver-lhe a razão, que deve preservá-lo dos excessos.
Ao lado do prazer,Deus colocou também a dor, que é um aviso da natureza para conter o mau uso que poderia levar à rápida destruição do organismo. Mas há outros meios de controle dos gozos, que não apenas pela dor física instantânea. Toda vez que a criatura humana abusa do direito do prazer, pelos excessos que comete, mais cedo ou mais tarde encontrará a resposta das leis naturais, por meio de aflições e doenças, seja na encarnação presente, seja nas encarnações vindouras, conforme as circunstâncias e a intensidade desses abusos, exacerbados em épocas festivas.
Por isso, os Espíritos superiores responderam a Kardec que o homem que procura nos excessos de todo gênero o requinte dos gozos é mais digno de lástima do que de inveja, 4 pois que, ao assim agir, pelo desgaste prematuro do corpo, provoca a antecipação da morte física, acrescida dos sofrimentos morais acarretados pelo remorso.
Ao contrário dos animais, em que os gozos são regulados pelo instinto, o homem, de posse da coroa da razão e do livre-arbítrio, experimenta os prazeres do sexo, do álcool, dos tóxicos e da alimentação,
conforme lhe aprouver. Quando se entrega, sem freios, aos deleites da existência física, descontrola-se e muitas vezes ultrapassa os limites do instinto que nele coexiste com a faculdade de raciocinar.
No outro extremo, há pessoas que, em rompantes de fanatismo, se privam, voluntariamente, das coisas, ou afligem o próprio corpo, sem que isso tenha qualquer finalidade útil ou elevada. Esse tipo de privação pouco valor tem perante Deus, pois há muito mais mérito em fazer o bem aos semelhantes. As privações voluntárias meritórias são aquelas que desprendem o homem da matéria e lhe elevam a alma, com a finalidade de auxiliar outros mais necessitados que ele mesmo.
Aqueles, porém, que se autoagridem no intuito egoístico de ganharem o “céu”, cada vez mais se afastam de Deus, uma vez que estão infringindo a lei natural que nos solicita a conservação do corpo, instrumento indispensável do nosso progresso.
Enfim, todo esforço que empreendermos para viver em harmonia com as leis divinas será recompensado e começaremos a colher aqui mesmo, na Terra, os benefícios de uma vida sóbria. Desenvolvendo
o senso moral, os homens haverão de se prestar mútuo apoio, sem que uns vivam à custa dos outros ou se autodestruam.
A vitória sobre nós mesmos é a grande batalha diária que travamos em nosso campo íntimo, na árdua tarefa de conciliar os instintos com a inteligência, sem desprezar o cultivo dos sentimentos elevados que nos aproximam de Deus.